segunda-feira, 12 de agosto de 2013

NEM SÓ DE FILÓSOFOS VIVE ATENAS: AS REPRESENTAÇÕES DO RURAL PELOS MEMORIALISTAS CAMANDUCAIENSES[1]

DANILO ANTONIO DOS SANTOS


Universidade do Vale do Sapucaí
Av. Pref. Tuany Toledo, 470 – 3750-000 – Pouso Alegre-MG – Brasil



Resumo: Neste artigo analisamos as representações do rural por dois memorialistas camanducaienses. Por ser um município que teve intensa relação com práticas rurais, entendemos que os homens campesinos foram excluídos da historiografia oficial, sendo representados de formas pejorativas pelas elites letradas. Para essas elites, o município era a terra dos filósofos e por isso a chamaram de Atenas do Sul de Minas. Portanto, a exaltação dos aspectos considerados eruditos, legou ao rural as representações de arcaico e incivilizado.

Palavras-Chave: Camanducaia. Rural. Memorialistas


Neste artigo analisamos as representações do rural por dois memorialistas do município de Camanducaia-MG. Este município localiza-se no Sul de Minas Gerais, à margem da rodovia Fernão Dias, mais ou menos a 70 Km de Pouso Alegre. Atualmente é um município com mais ou menos 21 mil habitantes, onde mais ou menos 5 mil vivem nas zonas rurais.

Apesar de atualmente apenas ¼ da população viver na zona rural, até a década de 1970 essa população campesina era majoritária à população urbana, porém pouco aparece na historiografia oficial. E quando é citada, é de maneira pejorativa. Para compreendermos essa questão, analisamos os discursos de duas principais obras memorialísticas. A primeira é do memorialista Plínio Gayer, cuja obra chamada Anuário Jaguary[2] foi escrita na década de 1920. A segunda obra é do memorialista Benedito Silva Santos, cuja obra chamada Fragmentos da História de Camanducaia foi escrita na década de 1960. Ambos foram políticos locais.

As duas obras têm em comum a exaltação às elites locais e aos homens letrados. São obras que pintaram uma cidade como tendo um passado glorioso, em que se destacava pelo grande número de intelectuais, e por isso, denominada por Benedito Silva Santos de Atenas do Sul de Minas, em alusão à antiga cidade grega conhecida na história por seus filósofos. Esses discursos são reproduzidos até a atualidade, constatando a escrita dos dois memorialistas como um forte discurso da memória oficial.

Somos uma cidade com um passado riquíssimo, com inúmeros nomes se destacando nas letras, música, artes, educação, esporte e também na política, com gente nascida aqui que chegou a fundar grandes cidades pelo Estado de Minas e também outros que ganharam destaque na política estadual. Chegamos a ser a principal cidade do nosso extremo Sul de Minas, com várias localidades que hoje são cidades, pertencendo a nossa comarca.[3]

Como podemos perceber, o passado é representado de maneira nostálgica, “tempos áureos”, onde se produzia capital intelectual. Não só isso, o passado, na narrativa da memória oficial, também serve de padrão para se pensar o futuro. Para os políticos camanducaienses, há uma necessidade de (re)construir o passado, já que eles entendem que o que se é representado sobre os tempos idos se enquadra para todas as classes sociais, como se os discursos de “progresso” fossem para todos os homens do coletivo municipal. Por isso falam sempre no plural, como se os “tempos áureos” fossem para todos os cidadãos: “...temos que adotar medidas para recolocar Camanducaia entre as principais cidades do nosso Sul de Minas, pois o sentimento é que a cidade está estagnada, parou.”[4]  Esse discurso sempre foi o mesmo nas décadas passadas. Tão semelhantes, que chegam a ser quase que com as mesmas palavras.

Parabéns Camanducaia, se hoje, às vezes , você não se destaca entre as principais cidades de Minas, outrora você se destacou entre as principais cidades do país, com relação a sua cultura retratada por políticos, músicos, poetas, compositores e escritores que levaram seu nome a lugares distantes, não apenas para ser reconhecida mas para ser respeitada. [...] estamos torcendo para que você reconquiste seu lugar na história [...] e se transforme em mais uma cidade apenas moderna.[5]

Nesta perspectiva, tudo o que não é erudito não merece ser lembrado. Dar créditos às memórias de sujeitos que não se enquadram na memória oficial é colocá-la em xeque, é expor os conflitos de uma sociedade extremamente desigual, onde a maioria das pessoas não tinham acesso à escola, eram exploradas pelos grandes fazendeiros, eram privadas de médicos, não tinham condições financeiras para comprar remédios e nem roupas. Ao analisarmos o passado apenas pelo olhar dos intelectuais, a impressão que temos é de que todas as pessoas viviam em conforto absoluto, portanto, ao reproduzirmos o que a memória oficial nos diz, não nos é possível enxergar os homens e mulheres que levantavam ao clarear do dia para trabalhar a terra. Não nos é possível enxergar os homens e mulheres que alimentavam o comércio citadino com seus produtos vindos do campo.

Se entendermos a História apenas pelos parâmetros econômicos e políticos, caímos em generalizações que nos conduzem à inércia crítica. A memória oficial não é coletiva, embora as classes hegemônicas queiram que assim pensemos. Se a memória oficial fosse coletiva, então acreditaríamos que a Independência do Brasil fez de todos os homens do século XIX livres. Acreditaríamos que a Proclamação da República em 1889 beneficiou a todos os homens e fez deles cidadãos. Se a memória oficial fosse coletiva, acreditaríamos que todos os homens foram beneficiados com os projetos de modernização no século XX. Por isso, entendemos a História no plural, onde não existe uma memória coletiva, mas sim memórias coletivas. A Independência do Brasil não surtiu o mesmo efeito para os negros e pobres, se comparando com os benefícios aos latifundiários. Os projetos modernistas do século XX não beneficiaram os pobres que viviam nos centros urbanos e que foram afetados diretamente pelas políticas higienistas. Há um grande equívoco em pensar que os benefícios conquistados pelas classes dominantes sejam igualmente partilhados pelas classes miseráveis economicamente. Sobre essa discussão da memória coletiva, Portelli nos diz:

Se toda memória fosse coletiva, bastaria uma testemunha para uma cultura inteira; sabemos que não é assim. Cada indivíduo, particularmente nos tempos e sociedades modenos, extrai memórias de uma variedade de grupos e as organiza de forma idiossincráticas. Como todas as atividades humanas, a memória é social e pode ser compartilhada (razão pela qual cada indivíduo tem algo a contribuir para a história “social”); [...] ela só se materializa nas reminiscências e nos discursos individuais. Ela só se torna memória coletiva quando é abstraída e separada da individual: no mito e no folclore (uma história para muitas pessoas...) (PORTELLI, 2002, p. 127) 

O livro de Plínio Gayer, escrito em 1924, se resume, não poderia deixar de ser, à exaltação das classes elitistas da época. O rural pouco é citado e quando o é, lhe é atribuído conotações pejorativas. Essas famílias elitistas não estavam alheias aos ideias modernistas republicanos, pois estavam em constante contato com cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, principais cidades difusoras desses ideais. Neste contexto, tudo o que remetia ao rural era visto como arcaico e pitoresco. Logicamente que, sendo assim, o rural não seria alvo de registros, uma vez que apresentaria as disparidades sociais vigentes. Enquanto se embelezava as praças com chafarizes de alto custo financeiro, enquanto as elites se vangloriavam por possuírem luz elétrica e carros de luxo, os homens campesinos viviam sob as luzes de lamparinas à querosene. Portanto, não seria conveniente às classes elitistas exporem em seus registros escritos e imagéticos os aspectos que contradiziam os seus ideais de progresso, já que:

Basta lembrar o fascínio que os dominantes exercem sobre os dominados através de seu cotidiano: roupas, veículos, joias, moradias, textos, regras de comportamento se impondo como ideal de vida. Basta lembrar também o papel que museus exercem na difusão desses valores pelo tipo de acervos que habitualmente preservam. (KHOURY. PEIXOTO. VIEIRA, 2008,p. 27)

Nos poucos textos do livro em que os aspectos do rural aparecem, em um deles encontramos claramente o papel do homem campesino na economia do município. São os homens do campo que abastecem a cidade, num fluxo de mercadorias cujo sentido se inicia no campo:

Das chacaras proximas e dos sitios distantes uma legua, mais ou menos começam a chegar os leiteiros. São meninos que vêm em seus cavallicoques, ou em eguas mansas, montados sobre um sapicuá, onde as garrafas de leite se alojam, de um e outro lado do arreio, como se fossem gaitas de orgam. Ziguezaguando de uma casa a outra, ás portas annunciam, com voz infantil:
---Leite!... [...] Passam pela rua central tropas de cargas, a madrinha bimbalhando, na frente, seu sincerro. Os roceiros tambem chegam, trazendo para vender aos comerciantes seus cevados mortos. Ao longe, as metades, pendentes nas cangalhas, parecem fatias enorme de melancia madura e de casca fina.[6]

Apesar de nos fornecer esses pequenos detalhes da presença dos sujeitos campesinos na vida citadina, em outro trecho do mesmo texto, Plínio Gayer não se exime em representar com sarcasmo, por meio indireto, a prática dos camponeses em produzirem os chás de erva para tratarem suas enfermidades ao descrever sobre a falta de cuidados médicos. Não só longe dos benefícios que a cidade oferecia, os camponeses também não possuíam recursos financeiros para consultas médicas, chegando na maioria das vezes ao óbito: “Lá do alto aparece um grupo de homens, descendo apressado. É o enterro de um roceiro, que, em geral, morreu á mingua de recursos médicos. É certo que tomou remédios”. Quando escreve “É certo que tomou remédios”, Plínio Gayer se refere aos remédios caseiros produzidos pelos campesinos, portanto, na sua compreensão, sem efeitos benéficos.

Ainda analisando as representações do rural no livro de Plínio Gayer, damos destaque a uma fábula onde podemos perceber por meio das alegorias desenvolvidas em torno dos aspectos considerados “atrasados” pela mentalidade erudita da época. Na fábula chamada O ridículo do sapo, o sapo em questão faz alusão ao roceiro, ou seja, o camponês. No enredo da historinha, o sapo é um personagem que resolve deixar o seu meio para se aventurar nos bailes da cidade. O sapo vivia em um meio rústico, longe da “civilização” (cidade). Só via o mundo “através da fumaça do seu cachimbo”, sendo o cachimbo um objeto que alude ao arcaico. Transcrevemos abaixo a fábula para que possamos melhor analisá-la.

No charco,entre as folhagens, vivia o sapo feliz e satisfeito a fumar o seu cachimbo. O grillo, um seu compadre, bohemio incorrigivel, que passava as noites inteiras a beber cerveja e a cantar, quebrava a monotonia da vida do chaco com sua serenatas.... Os vagalumes, voando luminosos, serviam de faiscantes lampadas eletricas... E o sapo via o resto do mundo através da fumaça de seu cachimbo.  Certo dia a vida do sapo sofreu uma completa transformação. O sapo perdeu a cabeça. Estava apaixonado por uma estrella, que elle via luzir todas as noites quando abria a janela para receber a serenata do seu amigo grillo. Sahiu então de sua simplicidade, envergou uma casaca, apertou sua tradicional barriganuma cinta elastica,  substituiu o cachimbo por um charuto e abalou para o club, onde costumavam bailar as estrellas. Ao penetrar o salão sentiu logo que aquelle não era seu ambiente. Ficou atordoado com o barulho infernal da orquestra onde havia, uma combinação de estardalhaços, desde a sanfona até o jazz-band. Contudo, não desanimou. Arriscou um fot-trot. Coitado, só sabia pular, suas pernas não permitiam os passos desta dança. Foi um desastre. Todo o salão divertiu-se á sua custa. Foi o bôbo da festa. Quando compreendeu a situação já era tarde. O espetaculo estava dado... E envergonhado o pobre sapo desapareceu no charco, para nunca mais surgir em público....[7]

                Decodificando a fábula em questão, encontramos palavras chaves que merecem atenção, pois somente assim poderemos compreender a caracterização do camponês pelo autor. O sapo, que caracteriza o camponês, onde a fábula faz alusão ao mesmo, troca seu artigo não luxuoso, como o cachimbo por exemplo, por um charuto, objeto que alude ao luxo da elite, além de dar mais conotação de status, uma vez que para se apresentar a um meio o qual não é o seu, há que se caracterizar como um burguês. Por isso também o uso da casaca. Como não está adaptado aos costumes burgueses (suas pernas não permitiam os passos desta dança), já que é cegado pelas tradições arcaicas do rural (fumaça do cachimbo), o camponês se passa por ridículo ao tentar ser o que não é; por isso é fácil ser notado. Não se adapta “ao barulho infernal da orquestra” (ritmo não monótono da cidade). Neste sentido, o “ser” burguês, nas representações da fábula, não implica apenas se vestir como tal, mas também seguir os padrões de comportamento estipulado por essa classe. A partir desta perspectiva, percebemos no texto de Plínio Gayer não só as representações do camponês, mas também os valores burgueses. Representações contrastantes de campo e cidade, onde se reforça a valorização dos aspectos citadinos ridicularizando os aspectos campesinos.

Mais do que fazer as representações do camponês por meio da escrita codificada da fábula, Plínio Gayer, em nota logo abaixo ao texto, diz diretamente a quem se refere, não deixando dúvidas seu incômodo pelo sujeito que simboliza para a burguesia o “atraso”. A cidade, neste sentido, não seria o lugar do camponês permanecer, pois suas práticas culturais não corresponderiam aos valores que aludem à “civilização”.

Como o sapo fazem muitos roceiros, que deixam de galope a rusticidade do campo pela civilização exótica dos salões. São logo notados, estão deslocados de seu meio. Que a história do sapo sirva de exemplo.[8]

Partindo desse pressuposto, o campo seria a representação da barbárie, uma vez que, apesar do autor não citar a palavra “bárbaro”, cita o seu antônimo: civilização. Resumindo, o esquema proposto é simples: Cidade = civilização, campo = bárbaro. Há que se destacar que o próprio conceito de civilização está intimamente ligado à concepção de cidade, portanto, o próprio conceito tem conotação segregacionista, uma vez que desenvolve valores pejorativos às culturas e costumes alheios aos padrões citadinos.

A associação entre cidade e civilização remonta aos próprios primórdios do desenvolvimento urbano. Cidade e cultura escrita nasceram juntos como componentes formadores daquilo que tradicionalmente se convencionou chamar de “civilização”. (BARROS, 2011, p. 101)


O livro de Plínio Gayer transmite a forte influência dos ideais da Bélle Epoque, onde as elites almejavam um afrancesamento da cultura urbana. Por isso a exaltação aos comportamentos e aos sujeitos que mais se aproximavam dos códigos de posturas europeus. A Europa, nesse sentido, é espelho para as práticas culturais das elites, que, ao enxergarem nesse continente as representações do que entendem por moderno, afrancesam-se no idioma, afrancesam a cidade na arquitetura e na paisagem.

Foram essas representações do passado camanducaiense que nos chegaram até o presente. Dessa maneira, ainda é muito comum, principalmente em épocas eleitorais, ouvirmos discursos que exorcizam esse passado europeizado, áureo, onde os “nossos intelectuais” se destacavam na política e nas artes. Para problematizar essa questão, caberia perguntar se a maioria dos cidadãos eram afrancesados assim como as elites. Talvez na resposta estaria a verdadeira questão pela qual as culturas que representavam o atraso aos olhos das elites não foram e não são dignas de serem lembradas. Talvez seria desconfortável para os intelectuais que escreveram sobre a cidade de Camanducaia apresentar nas suas memórias a cultura caipira[9] a qual eles estavam em constante contato, já que eram os homens do campo, depositários dessa cultura, que produziam os alimentos, eram eles que faziam o transporte de mercadorias nos carros de bois, eram eles que abriam as estradas vicinais com enxadões.

Comecemos por analisar os silêncios. Já que a intenção era consolidar uma identidade erudita para a cidade de Camanducaia, logicamente que estratégias deveriam ser colocadas em prática para que o meio rural ficasse de fora da escrita dos memorialistas. Quando falamos em estratégias de silêncios, não queremos dizer que o meio rural não fora citado, mas sim as formas de abordagens sobre esse meio é que são excludentes. Sendo assim, os camponeses são representados como sujeitos simples, vivendo em harmonia com a natureza exuberante, “mostrando apenas sua inocência, e escondendo suas misérias.” (WILLIAMS, 2011, p. 39)

Ali está o nosso lavrador que ama sua terra fértil, ladeada por colinas manchadas de vegetação, tendo ao fundo o céu azul, que a noite serena salpica de estrelas ...de silêncio. É êle o homem corajoso e honesto, que no anonimato do seu trabalho quotidiano, dialoga com suas pequenas sementes e colabora no engrandecimento de sua terra. [...] As casinhas, geralmente brancas, dão um toque de realeza à paisagem, onde a vida se escôa calmamente ao compasso inalterável de uma orquestração Divina.   [10]


Essas representações sobre o campo, para Williams, remontam à Antiguidade clássica e:

Em torno das comunidades existentes, historicamente bastante variadas, cristalizaram-se e generalizaram-se atitudes emocionais poderosas. O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida --- de paz, inocência e virtudes. À cidade associou-se a ideia de centro de realizações --- de saber, comunicações e luz. [...] o campo como lugar de atraso, ignorância e limitação. (WILLIAMS, 2011, p. 11)

Há que se contextualizar a década em que Benedito Santos escreveu seu livro, pois somente assim entenderemos os motivos de se consolidar uma memória oficial e os valores que ela propagaria posteriormente; e que infelizmente, ainda se fazem presentes. A década de 1960 ficou marcada com as tentativas de Reforma Agrária. As elites conservadoras tremeram de medo quando João Goulart propôs as Reformas de Base em 1964 ao Congresso Nacional. O País passava por um processo de desenvolvimento industrial que se iniciara com o governo Vargas e que se intensificou com o governo JK. Esse processo desenvolvimentista afetava também o campo, pois os fazendeiros expulsavam os antigos parceiros, colonos, para dar lugar aos maquinários. Os que ficavam sem terra para plantar, mudavam-se para as cidades. As propostas de Reforma Agrária de Jango iam de encontro aos interesses do agronegócio exportador, uma vez que se propunha ceder as terras não utilizadas pelos fazendeiros às massas de trabalhadores sem terra. Sendo assim, a maneira encontrada pelas elites conservadoras de se safarem foi dar o Golpe de Estado, ou seja, implantou-se uma Ditadura Civil-Militar em 1964. Civil-Militar porque a Ditadura teve apoio de segmentos sociais civis como a Igreja e a imprensa.

Com a Ditadura, mais os discursos desenvolvimentistas propagados pela televisão e o rádio, o êxodo rural era uma constante. Os camponeses que viviam sob o julgo dos fazendeiros, mudavam-se para as cidades à procura de melhores condições de vida. Logicamente que também havia os deslocamentos causados pelo fracionamento espacial do campo, onde as divisões de herança obrigavam herdeiros da terra a expulsar parte dos colonos devido à pouca produtividade agrícola. Camanducaia não ficou alheia a essas transformações, recebendo no meio urbano uma pequena massa de trabalhadores rurais a partir do final da década de 1960. Alguns camponeses não permaneceram e mudaram-se para São Paulo. Neste contexto, as elites políticas caíram em um dilema: aceitar a massa de “analfabetos” morando nos espaços consagrados pelos eruditos ou deixá-los ir embora para as cidades industrializadas? Já que se deixasse que eles fossem embora implicaria na falta de mão-de-obra para a construção de prédios públicos e casas, então a alternativa foi deixá-los ficar. Se as elites políticas não poderiam viver sem esses sujeitos que representavam o atraso com seus costumes vindos do campo, elas poderiam excluí-los da História da cidade. Já que o espaço citadino estava recebendo agentes sociais que não correspondiam às representações do moderno, era necessário às elites políticas buscar as origens em que essas representações se faziam presentes, por isso a nostalgia por um passado erudito.

Tudo o que aludia à cultura europeia era digno de ser exaltado e lembrado, estando a própria concepção de cultura ligada às práticas das elites políticas. Os tempos nostálgicos são caracterizados como os tempos em que os citadinos executavam músicas clássicas nas praças, encenavam peças teatrais, sempre tendo como modelo a Europa. O próprio trabalho manual é indigno de ser mencionado como prática que alude à concepção de civilização:

Por não ter muito o que fazer de trabalho manual, seu povo dedica-va se à aprendizagem da música, da pintura, da escultura, da representação teatral, para matar o tempo se deliciando! [...] Até 1925, quase todos os domingos, à tarde, uma banda de música, subia ao corêto do jardim da Praça Senador Francisco de Escobar, para executar, razoavelmente, música de Carlos Gomes, Verdi, Puccini, Mozart e de tantos outros grandes compositores. Ali, na Praça, todo mundo se reunia para prestigiar e aplaudir o espetáculo belíssimo de civilização e cultura.[11]

Percebe-se nessa narrativa, não apenas a exaltação à cultura erudita, mas também a consagração dos espaços em que se dava a sua prática. Não por acaso, a Praça Senador Francisco de Escobar é um dos lugares de memória mais usados como símbolo de progresso em Camanducaia. É o espaço mais fotografado, onde em qualquer biblioteca, em qualquer página virtual, em qualquer cartaz de propaganda que faz alusão à cidade de Camanducaia, lá está a Praça representada por fotografias. Sendo a praça em questão o símbolo máximo consagrado pela memória oficial, é a ela que se destinam as incontáveis reformas públicas, é a ela que as elites políticas recorrem como auxílio para demonstrar que os seus projetos modernistas se realizam.    

Foi justamente pelo incômodo de os “analfabetos” ocupar os espaços consagrados pelas elites, que Benedito Silva Santos escreveria que a cidade não mais se primava pela “distinção”. Mais do que fazer uma narrativa em tom preconceituoso, consagrando e exaltando os aspectos eruditos e inferiorizando os aspectos representativos do rural, as elites políticas promoveram a segregação do espaço citadino. Para que esses camponeses não ocupassem o centro da cidade, fez-se necessário a política de descentralização da pobreza, que consistia na doação de lotes nas zonas periféricas, onde se formariam os bairros do Cruzeiro e Alto do Cemitério. Era preciso reforçar a concepção de que os costumes vindos junto com os camponeses representavam o atraso, já que havia a necessidade de se fazer uma distinção entre moderno e arcaico, refletida na ocupação dos espaços citadinos. Se a cidade era reflexo do moderno, o campo representava o atraso. Atraso não no sentido restrito ao espacial do campo, mas principalmente sintetizado nas culturas dos agentes sociais campesinos que vinham morar na cidade. Percebe-se a partir de então, uma cidade que quer se mostrar ao Estado como uma cidade no rumo do progresso, mas que sofre limitações devido aos costumes arcaicos das zonas rurais. 

Agora, o seu carranquismo é devido ao “fator humano” de onde se originou e que nem custando a desaparecer, principalmente da zona rural, com os velhos costumes ainda predominando, em prejuízo do seu desenvolvimento.[12]    

A insatisfação do memorialista pelas mudanças sociais, políticas e econômicas, ocasionando todo esse processo de deslocamento da mão-de-obra campesina, é patente quando escreve: “O povo que trabalha e produz, enriquecendo a terra, êsse fugiu espavorido para trabalhar e enriquecer outras terras, amparado pela ação governamental!”[13]. Quem mais além dos trabalhadores rurais que vieram morar na cidade iria servir de mão-de-obra pública para o calçamento das ruas no futuro? Quem mais além deles iria servir de mão-de-obra para a construção de novas casas em novas ruas que se abriam?

Ambos os memorialistas eram das Ciências Naturais, sendo Plínio Gayer, médico e Benedito Silva Santos, farmacêutico. Ambos deixaram transparecer em suas narrativas um aspecto evolucionista da sociedade, próximo ao Darwinismo social. Benedito Santos foi influenciado pela escrita de Plínio quando escreveu o livro Fragmentos da História de Camanducaia. Se Plínio representou o meio rural como sendo “incivilizado”, o “charco” onde vivia o “sapo” cegado pela fumaça do cachimbo, Benedito Santos não fugiria a essa caracterização.

Em uma de suas citações, a que consideramos a mais agressiva de seu livro, Benedito Santos faz uma analogia do homem campesino à lepra, a uma doença social.

Meus senhores, nesta terra assim encantada, que as montanhas escarpadas guardam nos seus seios fecundos e prodigiosos, onde, outrora, a inteligência floresceu como o lírio imaculado, embalsamando as altas esferas da intelectualidade nacional, onde a imprensa liberal competia com as suas congêneres das grandes metrópoles onde as artes eram cultivadas como uma dádiva do céu, onde a sociedade se primava pela distinção e bom-gôsto, em noitadas elegantes e inesquecíveis, as luzes se apagaram, para dar lugar à mediocridade vicejante que, como a lepra, vem contaminando gerações e gerações, sem nenhuma providência, de quem de direito, capaz de exterminá-la do solo abençoado de nossa terra para recuperar-se da mácula degradante de “Terra de analfabetos”![14]

Analisando mais detalhadamente a citação acima, há que se considerar toda a estrutura discursiva do livro do memorialista no que se refere ao rural e ao homem campesino. Como já vimos anteriormente, o homem campesino é representado como incivilizado, inculto e etc. Portanto, quando o memorialista escreve que “a sociedade se primava pela distinção”, significa que havia a segregação espacial do que era considerado erudito e civilizado do aspecto considerado incivilizado, “medíocre”, nas palavras do memorialista.

Percebe-se que o memorialista busca em seu discurso uma referência ao Iluminismo francês quando diz que “as luzes se apagaram para dar lugar à mediocridade”, sendo as luzes em questão os eruditos, e os medíocres os analfabetos vindos do campo. Ainda analisando o discurso do memorialista, os analfabetos seriam uma doença que colocariam em risco a distinção social, e que deveria ser neutralizada por aqueles que têm o direito sobre a cidade: os letrados.

Esse descontentamento em relação aos homens campesinos deixa transparecer uma questão que é paradoxal à própria memória oficial do município: ele não era uma Atenas como se difundiu. Quando os homens campesinos começam a ocupar os espaços consagrados pelas elites letradas, eles passam a ser descritos pelas mesmas. Ainda que representados de maneiras pejorativas pelos memorialistas, os homens campesinos demonstraram com seu deslocamento para a cidade que eles sempre estiveram presentes em Camanducaia, porém eram excluídos da sua memória oficial.  



 Referências Bibliográficas



BARROS, José D’Assunção. “Cidade” e “Cultura”—considerações sobre uma relação complexa.  Revista de História Regional, Vol. 16, nº 1, (2011), p. 101. Disponível em: http://www.revistas2.uepg.br/index.php/rhr/article/view/2399.  Acesso em  29 de agosto de 2012.
KHOURY, Yara Maria Aun. PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo. A Pesquisa em História. 5ª Edição. São Paulo: Editora Ática, 2008.
PORTELLI, Alessandro. O Massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum. In: Usos e Abusos da História Oral. Organizado por: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. 5ª Ed. Rio de Janeiro: FGV, 2002.
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.









[1] Linha de Pesquisa: Espaço e Sociabilidades
[2] Antes de se chamar Camanducaia, o município chamava-se Jaguary.
[3] DIAS, Edmar Cassalho Moreira. Entrevista com o presidente da Câmara, Edmar Dias. Gazeta do Vale. Cambuí, edição especial, p. 6, Julho 2011. Entrevista concedida a Luís César Fonseca.
[4] Idem.
[5] CAMPOS, Servando de. Parabéns Camanducaia. Jornal Folha de Camanducaia. Camanducaia, ano III, nº 22, Junho-Julho/1994, p. 01.
[6] GAYER, Plinio. Anuario Jaguary.  Jaguary: 1924,  p. 63.
[7] Idem. p. 57
[8] Id., Ibd.
[9] Quando nos referimos à cultura caipira, não fazemos alusão a estereótipos preconceituosos como tanto se difundiu no cinema brasileiro, na literatura e também no senso comum. Entendemos a cultura caipira como resultado da mistura cultural entre o homem branco com o índio. O caipira neste sentido, é o sujeito que mescla nas suas práticas cotidianas e representações de mundo aspectos remanescentes do homem europeu com o nativo brasileiro. Podemos encontrar  tais aspectos híbridos na culinária, na prática agrícola, na língua, nas religiões, na dança, na música e etc. Para saber mais, ler: RIBEIRO, Darcy. O Brasil Caipira. In: O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
[10] SANTOS, Benedito Silva. Fragmentos da História de Camanducaia. Camanducaia, 1968, p. 241.
[11] SANTOS, Benedito Silva. Fragmentos da História de Camanducaia. Camanducaia, 1968, p. 303.
[12] Idem., p. 206.
[13] Id., Ibd., p. 25.
[14] SANTOS, Benedito Silva. Fragmentos da História de Camanducaia. Camanducaia, 1968, p. 252.

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