NEM SÓ DE
FILÓSOFOS VIVE ATENAS: AS REPRESENTAÇÕES DO RURAL PELOS MEMORIALISTAS
CAMANDUCAIENSES
DANILO ANTONIO
DOS SANTOS
Universidade do Vale do Sapucaí
Av. Pref. Tuany Toledo, 470 – 3750-000 – Pouso
Alegre-MG – Brasil
Resumo: Neste artigo analisamos as representações do rural
por dois memorialistas camanducaienses. Por ser um município que teve intensa
relação com práticas rurais, entendemos que os homens campesinos foram excluídos
da historiografia oficial, sendo representados de formas pejorativas pelas
elites letradas. Para essas elites, o município era a terra dos filósofos e por
isso a chamaram de Atenas do Sul de Minas. Portanto, a exaltação dos aspectos
considerados eruditos, legou ao rural as representações de arcaico e
incivilizado.
Palavras-Chave: Camanducaia.
Rural. Memorialistas
Neste artigo analisamos as
representações do rural por dois memorialistas do município de Camanducaia-MG.
Este município localiza-se no Sul de Minas Gerais, à margem da rodovia Fernão
Dias, mais ou menos a 70 Km de Pouso Alegre. Atualmente é um município com mais
ou menos 21 mil habitantes, onde mais ou menos 5 mil vivem nas zonas rurais.
Apesar de atualmente apenas ¼ da
população viver na zona rural, até a década de 1970 essa população campesina
era majoritária à população urbana, porém pouco aparece na historiografia
oficial. E quando é citada, é de maneira pejorativa. Para compreendermos essa
questão, analisamos os discursos de duas principais obras memorialísticas. A
primeira é do memorialista Plínio Gayer, cuja obra chamada Anuário Jaguary
foi escrita na década de 1920. A segunda obra é do memorialista Benedito
Silva Santos, cuja obra chamada Fragmentos
da História de Camanducaia foi escrita na década de 1960. Ambos foram
políticos locais.
As duas obras têm em comum a exaltação
às elites locais e aos homens letrados. São obras que pintaram uma cidade como
tendo um passado glorioso, em que se destacava pelo grande número de intelectuais,
e por isso, denominada por Benedito Silva Santos de Atenas do Sul de Minas, em
alusão à antiga cidade grega conhecida na história por seus filósofos. Esses
discursos são reproduzidos até a atualidade, constatando a escrita dos dois
memorialistas como um forte discurso da memória oficial.
Somos uma cidade
com um passado riquíssimo, com inúmeros nomes se destacando nas letras, música,
artes, educação, esporte e também na política, com gente nascida aqui que
chegou a fundar grandes cidades pelo Estado de Minas e também outros que
ganharam destaque na política estadual. Chegamos a ser a principal cidade do
nosso extremo Sul de Minas, com várias localidades que hoje são cidades,
pertencendo a nossa comarca.
Como podemos perceber, o passado é
representado de maneira nostálgica, “tempos áureos”, onde se produzia capital
intelectual. Não só isso, o passado, na narrativa da memória oficial, também
serve de padrão para se pensar o futuro. Para os políticos camanducaienses, há
uma necessidade de (re)construir o passado, já que eles entendem que o que se é
representado sobre os tempos idos se enquadra para todas as classes sociais,
como se os discursos de “progresso” fossem para todos os homens do coletivo
municipal. Por isso falam sempre no plural, como se os “tempos áureos” fossem
para todos os cidadãos: “...temos que
adotar medidas para recolocar Camanducaia entre as principais cidades do nosso
Sul de Minas, pois o sentimento é que a cidade está estagnada, parou.” Esse discurso sempre foi o mesmo nas décadas
passadas. Tão semelhantes, que chegam a ser quase que com as mesmas palavras.
Parabéns
Camanducaia, se hoje,
às
vezes , você não se destaca entre as principais cidades de Minas, outrora você
se destacou entre as principais cidades do país, com relação a sua cultura
retratada por políticos, músicos, poetas, compositores e escritores que levaram
seu nome a lugares distantes, não apenas para ser reconhecida mas para ser
respeitada. [...] estamos torcendo para que você reconquiste seu lugar na
história [...] e se transforme em mais uma cidade apenas moderna.
Nesta perspectiva, tudo o que não é
erudito não merece ser lembrado. Dar créditos às memórias de sujeitos que não
se enquadram na memória oficial é colocá-la em xeque, é expor os conflitos de
uma sociedade extremamente desigual, onde a maioria das pessoas não tinham
acesso à escola, eram exploradas pelos grandes fazendeiros, eram privadas de
médicos, não tinham condições financeiras para comprar remédios e nem roupas.
Ao analisarmos o passado apenas pelo olhar dos intelectuais, a impressão que
temos é de que todas as pessoas viviam em conforto absoluto, portanto, ao
reproduzirmos o que a memória oficial nos diz, não nos é possível enxergar os
homens e mulheres que levantavam ao clarear do dia para trabalhar a terra. Não
nos é possível enxergar os homens e mulheres que alimentavam o comércio
citadino com seus produtos vindos do campo.
Se entendermos a História apenas pelos
parâmetros econômicos e políticos, caímos em generalizações que nos conduzem à
inércia crítica. A memória oficial não é coletiva, embora as classes
hegemônicas queiram que assim pensemos. Se a memória oficial fosse coletiva,
então acreditaríamos que a Independência do Brasil fez de todos os homens do
século XIX livres. Acreditaríamos que a Proclamação da República em 1889
beneficiou a todos os homens e fez deles cidadãos. Se a memória oficial fosse
coletiva, acreditaríamos que todos os homens foram beneficiados com os projetos
de modernização no século XX. Por isso, entendemos a História no plural, onde
não existe uma memória coletiva, mas sim memórias coletivas. A Independência do
Brasil não surtiu o mesmo efeito para os negros e pobres, se comparando com os
benefícios aos latifundiários. Os projetos modernistas do século XX não beneficiaram
os pobres que viviam nos centros urbanos e que foram afetados diretamente pelas
políticas higienistas. Há um grande equívoco em pensar que os benefícios
conquistados pelas classes dominantes sejam igualmente partilhados pelas
classes miseráveis economicamente. Sobre essa discussão da memória coletiva,
Portelli nos diz:
Se toda memória
fosse coletiva, bastaria uma testemunha para uma cultura inteira; sabemos que
não é assim. Cada indivíduo, particularmente nos tempos e sociedades modenos,
extrai memórias de uma variedade de grupos e as organiza de forma
idiossincráticas. Como todas as atividades humanas, a memória é social e pode ser compartilhada (razão pela qual cada indivíduo tem algo a contribuir
para a história “social”); [...] ela só se materializa nas reminiscências e nos
discursos individuais. Ela só se torna memória coletiva quando é abstraída e separada da individual: no mito e no
folclore (uma história para muitas pessoas...) (PORTELLI, 2002, p. 127)
O livro de Plínio Gayer, escrito em 1924,
se resume, não poderia deixar de ser, à exaltação das classes elitistas da
época. O rural pouco é citado e quando o é, lhe é atribuído conotações
pejorativas. Essas famílias elitistas não estavam alheias aos ideias
modernistas republicanos, pois estavam em constante contato com cidades como
São Paulo e Rio de Janeiro, principais cidades difusoras desses ideais. Neste
contexto, tudo o que remetia ao rural era visto como arcaico e pitoresco.
Logicamente que, sendo assim, o rural não seria alvo de registros, uma vez que
apresentaria as disparidades sociais vigentes. Enquanto se embelezava as praças
com chafarizes de alto custo financeiro, enquanto as elites se vangloriavam por
possuírem luz elétrica e carros de luxo, os homens campesinos viviam sob as luzes
de lamparinas à querosene. Portanto, não seria conveniente às classes elitistas
exporem em seus registros escritos e imagéticos os aspectos que contradiziam os
seus ideais de progresso, já que:
Basta lembrar o
fascínio que os dominantes exercem sobre os dominados através de seu cotidiano:
roupas, veículos, joias, moradias, textos, regras de comportamento se impondo
como ideal de vida. Basta lembrar também o papel que museus exercem na difusão
desses valores pelo tipo de acervos que habitualmente preservam. (KHOURY.
PEIXOTO. VIEIRA, 2008,p. 27)
Nos poucos textos do livro em que os
aspectos do rural aparecem, em um deles encontramos claramente o papel do homem
campesino na economia do município. São os homens do campo que abastecem a
cidade, num fluxo de mercadorias cujo sentido se inicia no campo:
Das chacaras
proximas e dos sitios distantes uma legua, mais ou menos começam a chegar os
leiteiros. São meninos que vêm em seus cavallicoques, ou em eguas mansas,
montados sobre um sapicuá, onde as
garrafas de leite se alojam, de um e outro lado do arreio, como se fossem
gaitas de orgam. Ziguezaguando de uma casa a outra, ás portas annunciam, com
voz infantil:
---Leite!...
[...] Passam pela rua central tropas de cargas, a madrinha bimbalhando, na frente, seu sincerro. Os roceiros tambem
chegam, trazendo para vender aos comerciantes seus cevados mortos. Ao longe, as metades, pendentes nas cangalhas,
parecem fatias enorme de melancia madura e de casca fina.
Apesar de nos fornecer esses pequenos
detalhes da presença dos sujeitos campesinos na vida citadina, em outro trecho
do mesmo texto, Plínio Gayer não se exime em representar com sarcasmo, por meio
indireto, a prática dos camponeses em produzirem os chás de erva para tratarem
suas enfermidades ao descrever sobre a falta de cuidados médicos. Não só longe
dos benefícios que a cidade oferecia, os camponeses também não possuíam
recursos financeiros para consultas médicas, chegando na maioria das vezes ao
óbito: “Lá do alto aparece um grupo de
homens, descendo apressado. É o enterro de um roceiro, que, em geral, morreu á
mingua de recursos médicos. É certo que tomou remédios”. Quando escreve “É certo que tomou remédios”, Plínio
Gayer se refere aos remédios caseiros produzidos pelos campesinos, portanto, na
sua compreensão, sem efeitos benéficos.
Ainda analisando as representações do
rural no livro de Plínio Gayer, damos destaque a uma fábula onde podemos
perceber por meio das alegorias desenvolvidas em torno dos aspectos
considerados “atrasados” pela mentalidade erudita da época. Na fábula chamada O ridículo do sapo, o sapo em questão
faz alusão ao roceiro, ou seja, o camponês. No enredo da historinha, o sapo é
um personagem que resolve deixar o seu meio para se aventurar nos bailes da
cidade. O sapo vivia em um meio rústico, longe da “civilização” (cidade). Só
via o mundo “através da fumaça do seu cachimbo”, sendo o cachimbo um objeto que
alude ao arcaico. Transcrevemos abaixo a fábula para que possamos melhor
analisá-la.
No charco,entre as folhagens,
vivia o sapo feliz e satisfeito a fumar o seu cachimbo. O grillo, um seu
compadre, bohemio incorrigivel, que passava as noites inteiras a beber cerveja
e a cantar, quebrava a monotonia da vida do chaco com sua serenatas.... Os
vagalumes, voando luminosos, serviam de faiscantes lampadas eletricas... E o
sapo via o resto do mundo através da fumaça de seu cachimbo. Certo dia a vida do sapo sofreu uma completa
transformação. O sapo perdeu a cabeça. Estava apaixonado por uma estrella, que
elle via luzir todas as noites quando abria a janela para receber a serenata do
seu amigo grillo. Sahiu então de sua simplicidade, envergou uma casaca, apertou
sua tradicional barriganuma cinta elastica,
substituiu o cachimbo por um charuto e abalou para o club, onde
costumavam bailar as estrellas. Ao penetrar o salão sentiu logo que aquelle não
era seu ambiente. Ficou atordoado com o barulho infernal da orquestra onde
havia, uma combinação de estardalhaços, desde a sanfona até o jazz-band.
Contudo, não desanimou. Arriscou um fot-trot. Coitado, só sabia pular, suas
pernas não permitiam os passos desta dança. Foi um desastre. Todo o salão
divertiu-se á sua custa. Foi o bôbo da festa. Quando compreendeu a situação já
era tarde. O espetaculo estava dado... E envergonhado o pobre sapo desapareceu
no charco, para nunca mais surgir em público....
Decodificando a
fábula em questão, encontramos palavras chaves que merecem atenção, pois
somente assim poderemos compreender a caracterização do camponês pelo autor. O
sapo, que caracteriza o camponês, onde a fábula faz alusão ao mesmo, troca seu
artigo não luxuoso, como o cachimbo por exemplo, por um charuto, objeto que
alude ao luxo da elite, além de dar mais conotação de status, uma vez que para
se apresentar a um meio o qual não é o seu, há que se caracterizar como um
burguês. Por isso também o uso da casaca. Como não está adaptado aos costumes
burgueses (suas pernas não permitiam os passos desta dança), já que é cegado
pelas tradições arcaicas do rural (fumaça do cachimbo), o camponês se passa por
ridículo ao tentar ser o que não é; por isso é fácil ser notado. Não se adapta
“ao barulho infernal da orquestra” (ritmo não monótono da cidade). Neste
sentido, o “ser” burguês, nas representações da fábula, não implica apenas se
vestir como tal, mas também seguir os padrões de comportamento estipulado por
essa classe. A partir desta perspectiva, percebemos no texto de Plínio Gayer
não só as representações do camponês, mas também os valores burgueses.
Representações contrastantes de campo e cidade, onde se reforça a valorização
dos aspectos citadinos ridicularizando os aspectos campesinos.
Mais do que fazer as representações do
camponês por meio da escrita codificada da fábula, Plínio Gayer, em nota logo
abaixo ao texto, diz diretamente a quem se refere, não deixando dúvidas seu
incômodo pelo sujeito que simboliza para a burguesia o “atraso”. A cidade,
neste sentido, não seria o lugar do camponês permanecer, pois suas práticas
culturais não corresponderiam aos valores que aludem à “civilização”.
Como o sapo
fazem muitos roceiros, que deixam de galope a rusticidade do campo pela
civilização exótica dos salões. São logo notados, estão deslocados de seu meio.
Que a história do sapo sirva de exemplo.
Partindo desse pressuposto, o campo
seria a representação da barbárie, uma vez que, apesar do autor não citar a
palavra “bárbaro”, cita o seu antônimo: civilização. Resumindo, o esquema
proposto é simples: Cidade = civilização, campo = bárbaro. Há que se destacar
que o próprio conceito de civilização está intimamente ligado à concepção de
cidade, portanto, o próprio conceito tem conotação segregacionista, uma vez que
desenvolve valores pejorativos às culturas e costumes alheios aos padrões
citadinos.
A associação
entre cidade e civilização remonta aos próprios primórdios do desenvolvimento
urbano. Cidade e cultura escrita nasceram juntos como componentes
formadores daquilo que tradicionalmente se convencionou chamar de
“civilização”. (BARROS, 2011, p. 101)
O livro de Plínio Gayer transmite a
forte influência dos ideais da Bélle Epoque, onde as elites almejavam um
afrancesamento da cultura urbana. Por isso a exaltação aos comportamentos e aos
sujeitos que mais se aproximavam dos códigos de posturas europeus. A Europa,
nesse sentido, é espelho para as práticas culturais das elites, que, ao
enxergarem nesse continente as representações do que entendem por moderno,
afrancesam-se no idioma, afrancesam a cidade na arquitetura e na paisagem.
Foram essas representações do passado
camanducaiense que nos chegaram até o presente. Dessa maneira, ainda é muito
comum, principalmente em épocas eleitorais, ouvirmos discursos que exorcizam
esse passado europeizado, áureo, onde os “nossos intelectuais” se destacavam na
política e nas artes. Para problematizar essa questão, caberia perguntar se a
maioria dos cidadãos eram afrancesados assim como as elites. Talvez na resposta
estaria a verdadeira questão pela qual as culturas que representavam o atraso
aos olhos das elites não foram e não são dignas de serem lembradas. Talvez seria
desconfortável para os intelectuais que escreveram sobre a cidade de
Camanducaia apresentar nas suas memórias a cultura caipira
a qual eles estavam em constante contato, já que eram os homens do campo,
depositários dessa cultura, que produziam os alimentos, eram eles que faziam o
transporte de mercadorias nos carros de bois, eram eles que abriam as estradas
vicinais com enxadões.
Comecemos por analisar os silêncios. Já
que a intenção era consolidar uma identidade erudita para a cidade de
Camanducaia, logicamente que estratégias deveriam ser colocadas em prática para
que o meio rural ficasse de fora da escrita dos memorialistas. Quando falamos
em estratégias de silêncios, não queremos dizer que o meio rural não fora
citado, mas sim as formas de abordagens sobre esse meio é que são excludentes.
Sendo assim, os camponeses são representados como sujeitos simples, vivendo em
harmonia com a natureza exuberante, “mostrando apenas sua inocência, e
escondendo suas misérias.” (WILLIAMS,
2011, p. 39)
Ali está o nosso
lavrador que ama sua terra fértil, ladeada por colinas manchadas de vegetação,
tendo ao fundo o céu azul, que a noite serena salpica de estrelas ...de
silêncio. É êle o homem corajoso e honesto, que no anonimato do seu trabalho
quotidiano, dialoga com suas pequenas sementes e colabora no engrandecimento de
sua terra. [...] As casinhas, geralmente brancas, dão um toque de realeza à
paisagem, onde a vida se escôa calmamente ao compasso inalterável de uma
orquestração Divina.
Essas representações sobre o campo,
para Williams, remontam à Antiguidade clássica e:
Em torno das
comunidades existentes, historicamente bastante variadas, cristalizaram-se e
generalizaram-se atitudes emocionais poderosas. O campo passou a ser associado
a uma forma natural de vida --- de paz, inocência e virtudes. À cidade
associou-se a ideia de centro de realizações --- de saber, comunicações e luz.
[...] o campo como lugar de atraso, ignorância e limitação. (WILLIAMS, 2011, p.
11)
Há que se contextualizar a década em
que Benedito Santos escreveu seu livro, pois somente assim entenderemos os
motivos de se consolidar uma memória oficial e os valores que ela propagaria
posteriormente; e que infelizmente, ainda se fazem presentes. A década de 1960
ficou marcada com as tentativas de Reforma Agrária. As elites conservadoras
tremeram de medo quando João Goulart propôs as Reformas de Base em 1964 ao
Congresso Nacional. O País passava por um processo de desenvolvimento
industrial que se iniciara com o governo Vargas e que se intensificou com o
governo JK. Esse processo desenvolvimentista afetava também o campo, pois os
fazendeiros expulsavam os antigos parceiros, colonos, para dar lugar aos
maquinários. Os que ficavam sem terra para plantar, mudavam-se para as cidades.
As propostas de Reforma Agrária de Jango iam de encontro aos interesses do
agronegócio exportador, uma vez que se propunha ceder as terras não utilizadas
pelos fazendeiros às massas de trabalhadores sem terra. Sendo assim, a maneira
encontrada pelas elites conservadoras de se safarem foi dar o Golpe de Estado,
ou seja, implantou-se uma Ditadura Civil-Militar em 1964. Civil-Militar porque
a Ditadura teve apoio de segmentos sociais civis como a Igreja e a imprensa.
Com a Ditadura, mais os discursos
desenvolvimentistas propagados pela televisão e o rádio, o êxodo rural era uma
constante. Os camponeses que viviam sob o julgo dos fazendeiros, mudavam-se
para as cidades à procura de melhores condições de vida. Logicamente que também
havia os deslocamentos causados pelo fracionamento espacial do campo, onde as
divisões de herança obrigavam herdeiros da terra a expulsar parte dos colonos
devido à pouca produtividade agrícola. Camanducaia não ficou alheia a essas
transformações, recebendo no meio urbano uma pequena massa de trabalhadores
rurais a partir do final da década de 1960. Alguns camponeses não permaneceram
e mudaram-se para São Paulo. Neste contexto, as elites políticas caíram em um
dilema: aceitar a massa de “analfabetos” morando nos espaços consagrados pelos
eruditos ou deixá-los ir embora para as cidades industrializadas? Já que se
deixasse que eles fossem embora implicaria na falta de mão-de-obra para a
construção de prédios públicos e casas, então a alternativa foi deixá-los
ficar. Se as elites políticas não poderiam viver sem esses sujeitos que
representavam o atraso com seus costumes vindos do campo, elas poderiam
excluí-los da História da cidade. Já que o espaço citadino estava recebendo
agentes sociais que não correspondiam às representações do moderno, era
necessário às elites políticas buscar as origens em que essas representações se
faziam presentes, por isso a nostalgia por um passado erudito.
Tudo o que aludia à cultura europeia
era digno de ser exaltado e lembrado, estando a própria concepção de cultura
ligada às práticas das elites políticas. Os tempos nostálgicos são
caracterizados como os tempos em que os citadinos executavam músicas clássicas
nas praças, encenavam peças teatrais, sempre tendo como modelo a Europa. O
próprio trabalho manual é indigno de ser mencionado como prática que alude à
concepção de civilização:
Por não ter muito o
que fazer de trabalho manual, seu povo dedica-va se à aprendizagem da música,
da pintura, da escultura, da representação teatral, para matar o tempo se
deliciando! [...] Até 1925, quase todos os domingos, à tarde, uma banda de
música, subia ao corêto do jardim da Praça Senador Francisco de Escobar, para
executar, razoavelmente, música de Carlos Gomes, Verdi, Puccini, Mozart e de
tantos outros grandes compositores. Ali, na Praça, todo mundo se reunia para
prestigiar e aplaudir o espetáculo belíssimo de civilização e cultura.
Percebe-se nessa narrativa, não apenas
a exaltação à cultura erudita, mas também a consagração dos espaços em que se
dava a sua prática. Não por acaso, a Praça Senador Francisco de Escobar é um
dos lugares de memória mais usados como símbolo de progresso em Camanducaia. É
o espaço mais fotografado, onde em qualquer biblioteca, em qualquer página
virtual, em qualquer cartaz de propaganda que faz alusão à cidade de
Camanducaia, lá está a Praça representada por fotografias. Sendo a praça em
questão o símbolo máximo consagrado pela memória oficial, é a ela que se
destinam as incontáveis reformas públicas, é a ela que as elites políticas
recorrem como auxílio para demonstrar que os seus projetos modernistas se
realizam.
Foi justamente pelo incômodo de os
“analfabetos” ocupar os espaços consagrados pelas elites, que Benedito Silva
Santos escreveria que a cidade não mais se primava pela “distinção”. Mais do
que fazer uma narrativa em tom preconceituoso, consagrando e exaltando os
aspectos eruditos e inferiorizando os aspectos representativos do rural, as
elites políticas promoveram a segregação do espaço citadino. Para que esses
camponeses não ocupassem o centro da cidade, fez-se necessário a política de
descentralização da pobreza, que consistia na doação de lotes nas zonas
periféricas, onde se formariam os bairros do Cruzeiro e Alto do Cemitério. Era
preciso reforçar a concepção de que os costumes vindos junto com os camponeses
representavam o atraso, já que havia a necessidade de se fazer uma distinção
entre moderno e arcaico, refletida na ocupação dos espaços citadinos. Se a
cidade era reflexo do moderno, o campo representava o atraso. Atraso não no
sentido restrito ao espacial do campo, mas principalmente sintetizado nas
culturas dos agentes sociais campesinos que vinham morar na cidade. Percebe-se
a partir de então, uma cidade que quer se mostrar ao Estado como uma cidade no
rumo do progresso, mas que sofre limitações devido aos costumes arcaicos das
zonas rurais.
Agora, o seu
carranquismo é devido ao “fator humano” de onde se originou e que nem custando
a desaparecer, principalmente da zona rural, com os velhos costumes ainda
predominando, em prejuízo do seu desenvolvimento.
A insatisfação do memorialista pelas
mudanças sociais, políticas e econômicas, ocasionando todo esse processo de
deslocamento da mão-de-obra campesina, é patente quando escreve: “O povo que
trabalha e produz, enriquecendo a terra, êsse fugiu espavorido para trabalhar e
enriquecer outras terras, amparado pela ação governamental!”. Quem mais além dos trabalhadores
rurais que vieram morar na cidade iria servir de mão-de-obra pública para o
calçamento das ruas no futuro? Quem mais além deles iria servir de mão-de-obra
para a construção de novas casas em novas ruas que se abriam?
Ambos os memorialistas eram das
Ciências Naturais, sendo Plínio Gayer, médico e Benedito Silva Santos,
farmacêutico. Ambos deixaram transparecer em suas narrativas um aspecto
evolucionista da sociedade, próximo ao Darwinismo social. Benedito Santos foi
influenciado pela escrita de Plínio quando escreveu o livro Fragmentos da História de Camanducaia.
Se Plínio representou o meio rural como sendo “incivilizado”, o “charco” onde
vivia o “sapo” cegado pela fumaça do cachimbo, Benedito Santos não fugiria a
essa caracterização.
Em uma de suas citações, a que
consideramos a mais agressiva de seu livro, Benedito Santos faz uma analogia do
homem campesino à lepra, a uma doença social.
Meus senhores,
nesta terra assim encantada, que as montanhas escarpadas guardam nos seus seios
fecundos e prodigiosos, onde, outrora, a inteligência floresceu como o lírio
imaculado, embalsamando as altas esferas da intelectualidade nacional, onde a
imprensa liberal competia com as suas congêneres das grandes metrópoles onde as
artes eram cultivadas como uma dádiva do céu, onde a sociedade se primava pela
distinção e bom-gôsto, em noitadas elegantes e inesquecíveis, as luzes se
apagaram, para dar lugar à mediocridade vicejante que, como a lepra, vem
contaminando gerações e gerações, sem nenhuma providência, de quem de direito,
capaz de exterminá-la do solo abençoado de nossa terra para recuperar-se da
mácula degradante de “Terra de analfabetos”!
Analisando mais detalhadamente a
citação acima, há que se considerar toda a estrutura discursiva do livro do
memorialista no que se refere ao rural e ao homem campesino. Como já vimos
anteriormente, o homem campesino é representado como incivilizado, inculto e
etc. Portanto, quando o memorialista escreve que “a sociedade se primava pela
distinção”, significa que havia a segregação espacial do que era considerado
erudito e civilizado do aspecto considerado incivilizado, “medíocre”, nas
palavras do memorialista.
Percebe-se que o memorialista busca em
seu discurso uma referência ao Iluminismo francês quando diz que “as luzes se
apagaram para dar lugar à mediocridade”, sendo as luzes em questão os eruditos,
e os medíocres os analfabetos vindos do campo. Ainda analisando o discurso do
memorialista, os analfabetos seriam uma doença que colocariam em risco a
distinção social, e que deveria ser neutralizada por aqueles que têm o direito
sobre a cidade: os letrados.
Esse descontentamento em relação aos homens
campesinos deixa transparecer uma questão que é paradoxal à própria memória
oficial do município: ele não era uma Atenas como se difundiu. Quando os homens
campesinos começam a ocupar os espaços consagrados pelas elites letradas, eles
passam a ser descritos pelas mesmas. Ainda que representados de maneiras
pejorativas pelos memorialistas, os homens campesinos demonstraram com seu
deslocamento para a cidade que eles sempre estiveram presentes em Camanducaia,
porém eram excluídos da sua memória oficial.
Referências Bibliográficas